Contrariando estudos clássicos, pesquisa mostra que pessoas que cometem atos cruéis a mando de autoridades não o fazem por obediência cega, mas por acreditarem estar fazendo a coisa certa
Guilherme Rosa
Adolf Hitler é saudado pelos seus ajudantes em 1932: entusiasmo, e não apatia
(Getty Images)
Grande parte da compreensão sobre como pessoas normais se comportam em
ditaduras vem de estudos realizados nos anos 1960 e 1970. A Segunda
Guerra Mundial ainda estava viva na lembrança e cientistas de todo o
mundo tentavam explicar os horrores vistos na Alemanha nazista, onde
cidadãos comuns — até mesmo exemplares — cometeram atos de extrema
crueldade a mando do governo. Pesquisas clássicas lideradas pelos
psicólogos americanos Stanley Milgram e Philip Zimbardo mostraram que o
mais pacato dos seres humanos poderia cometer atos terríveis se assim
lhe fosse ordenado pelas autoridades, pois teríamos uma tendência inata à
obediência e à submissão.
CONHEÇA A PESQUISA
Título original: Contesting the "Nature" Of Conformity: What Milgram and Zimbardo's Studies Really Show
Onde foi divulgada: revista PLOS Biology
Quem fez: Alexander Haslam e Stephen Reicher
Instituição: Escola de Psicologia da Universidade de Queensland, na Austrália
Resultado: Os pesquisadores questionaram o resultado de dois estudos anteriores, realizados pelos psicólogos Stanley Milgram e Philip Zimbardo nas décadas de 1960 e 1970. Eles diziam que a obediência aos desmandos de autoridades mostrava que os seres humanos normais tendiam a se conformar com a tirania. A nova tese diz que essa obediência se deve ao fato de a pessoa se identificar com a autoridade e acreditar estar fazendo a coisa certa.
Um novo artigo publicado na edição desta semana da revista PLOS Biology
revisita as conclusões desses estudos e afirma que as pessoas que
agiram daquela maneira não eram apenas motivadas pela obediência cega,
mas também demonstravam entusiasmo ao realizar atrocidades. Pessoas
capazes de cometer atos cruéis não são penas receptoras passivas de
ordens; elas também se identificam com autoridades abusivas, e acreditam
estar fazendo a coisa certa mesmo quando são violentas.
Essa discussão começou no início da década de 1960, logo após o
julgamento de Adolf Eichmann, um burocrata nazista que ajudou a elaborar
os planos de extermínio de judeus. Eichmann, que conseguiu se esconder
durante dez anos na Argentina, estava sendo julgado por ter ajudado a
transportar milhões de pessoas para os campos de concentração. No
entanto, o que espantou os pesquisadores da época é que ele parecia ser
um sujeito normal, que apenas cumpria ordens de autoridades — mesmo que
essas ordens implicassem no genocídio. No livro Eichmann em Jerusalém,
a filósofa alemã Hannah Arendt cunhou a expressão "banalidade do mal"
para explicar por que grandes crimes da humanidade não foram cometidos
por monstros, mas por gente comum que aceita ordens superiores. Nos anos
seguintes, a tese de origem a um grande número de pesquisas sobre o
assunto.
Autoritarismo de laboratório — Em 1963, Stanley
Milgram conduziu um experimento para comprovar a ideia de que pessoas
comuns obedeciam de modo cego às ordens das autoridades. Pesquisador da
Universidade Yale, ele convocou 40 voluntários para participar do
estudo, mas avisou apenas que iriam fazer parte de um teste de memória.
Todos foram designados para a posição de "professor" e instados a ajudar
um segundo voluntário, que seria o "aluno", a memorizar uma série de
palavras. A cada palavra errada, deveriam aplicar um choque elétrico no
aluno. Os choques começavam leves, com apenas 15 volts, mas cresciam a
cada resposta errada até atingir o valor de 450 volts, que pode ser
mortal para um ser humano.
O que os voluntários não sabiam é que o homem respondendo às perguntas
era um ator, e os choques não eram reais. Milgram não estava interessado
na memória, mas em quão longe os voluntários iriam ao aplicar os
choques elétricos. E eles foram longe: todos os participantes deram
choques de até 300 V. Desses, 65% não pararam de aplicar os choques até
atingir os 450 volts – mesmo com os atores fingindo extremo sofrimento.
Segundo o psicólogo, o experimento mostra que pessoas normais estariam
dispostas até a matar um completo estranho simplesmente por terem
recebido a ordem de uma autoridade.
Já o estudo realizado por Philip Zimbardo na Universidade de Stanford,
em 1971, buscou analisar como as pessoas estão dispostas a assumir
papéis abusivos se esses lhes forem designados por autoridades. Zimbardo
escolheu 24 voluntários, e os separou de modo aleatório em dois grupos:
guardas ou prisioneiros. Eles foram colocados dentro de uma
falsa prisão construída no Departamento de Psicologia da universidade, e
os guardas instruídos a agir do modo que fosse necessário para manter o
controle.
Seu objetivo era observar a interação entre os dois grupos, e ver como
se comportariam sem uma autoridade por perto. Os resultados foram
chocantes. Os guardas começaram a agir de modo tão abusivo e violento
que o estudo precisou ser interrompido depois de apenas seis dias.
Zimbardo concluiu que os voluntários assumiram um comportamento
autoritário porque se adequaram de modo automático ao papel que lhes foi
designado, mesmo sem receber ordens específicas para isso. Segundo o
psiquiatra, a brutalidade era apenas uma consequência da representação
do papel de guarda e da pressão do resto do grupo.
Tanto o estudo de Milgram quanto o de Zimbardo se tornaram referências
na área. Falavam sobre a natureza humana e a submisso do homem à
autoridade — e ambos deram origem a filmes, documentários e livros
diversos.
Videoteca básica
A ExperiênciaBaseado no estudo de Philip Zimbardo, o filme conta a história de 20 voluntários recrutados para um experimento que simularia duas semanas de prisão. A metade dos voluntários é designado o papel de guarda e a outra metade o papel de prisioneiro. Com o passar do tempo, os primeiros começam a exercer o poder de forma abusiva e a maltratar o outro grupo. Ao contrário de experiência de Zimbardo, no entanto, o cientista responsável não interrompe a pesquisa, com resultados violentos e macabros.
Direção: OLIVER HIRSCHBIEGEL
Fé na autoridade — No entanto, o novo artigo escrito por Alex Haslam, psicólogo da Universidade de Queensland, na Austrália, publicado na PLOS Biology, questiona
o resultado de ambos os trabalhos e nega o fato de a obediência à
tirania resultar da submissão cega às regras e aos papéis estipulados.
Haslam afirma que esses seguidores não são passivos, mas criativso, e
suas ações brotam do fato de eles se identificarem com as autoridades e
acreditarem em suas premissas. "Pessoas decentes participam de atos
horríveis não porque se tornam funcionários negligentes que não sabem o
que estão fazendo, mas porque eles começam a acreditar — normalmente sob
a influência de uma autoridade — que estão fazendo a coisa certa", diz o
pesquisador.
A tese de Haslam foi formulada a partir de um experimento que ele
conduziu em parceria com a rede de televisão inglesa BBC em 2002. Ele
replicou o experimento da prisão feito por Zimbardo, mas garantiu que
não houvesse nenhuma interferência por parte dos pesquisadores e os
guardas não soubessem, a princípio, como deviam agir.
Dessa vez, os voluntários demoraram muito mais tempo para assumir seus
papéis. Os prisioneiros foram os primeiros a se identificar como um
grupo, e encontraram um modo de resistir à autoridade dos guardas,
criando um sistema mais igualitário na prisão. Segundo Haslam, isso
mostra que as pessoas não se submetem automaticamente aos papéis que
lhes são incumbidos, e que elas podem resistir a esses papéis quando não
gostam das consequências.
Com o passar do tempo, no entanto, uma parte dos guardas e dos
prisioneiros passou a acreditar que a situação estava fugindo do
controle e conspirou para criar uma nova hierarquia na prisão. No final,
o experimento desencadeou o mesmo tipo de abusos que o realizado nos
anos 1970 por Zimbardo. Mas, segundo Haslam, isso não aconteceu porque
os voluntários aceitavam cegamente o papel de guarda. Ao contrário, foi
só quando os indivíduos passaram a acreditar no novo papel, e a se
entusiasmar com as ações, que a nova ordem autoritária se impôs.
Para o psicólogo, o estudo de 2002 demonstrou que aqueles que obedecem à
autoridade não o fazem de modo cego, mas de modo ativo. O fazem por
escolha e não necessidade e, por isso deveriam ser vistos como
seguidores engajados, e não conformistas cegos. Ao analisar o estudo de
Stanley Milgram, Haslam diz que os voluntários só aceitaram aplicar os
choques porque acreditavam e se identificavam com os objetivos
científicos do pesquisador.
Sob esse ponto de vista, Adolf Eichmann, o burocrata nazista, tinha
total conhecimento das consequências de seus atos. "Esses burocratas
sabiam muito bem o que faziam, mas acreditavam que isso era a coisa
certa. Matar pessoas inocentes é difícil, e requer um grande nível de
convencimento. Era a fé no regime nazista que lhes permitia fazer isso",
diz Haslam em entrevista ao site de VEJA. Para o psicólogo, o alemão
não era apenas um funcionário obediente e passivo, mas um participante
ativo no massacre de judeus. A corte que julgava Eichmann concordou com
essa visão: ele foi considerado culpado de uma série de crimes,
incluindo crimes contra a humanidade, e enforcado em 1962 em Israel.
"Se as pessoas apenas seguissem ordens, as tiranias não chegariam a lugar nenhum. Esses regimes contam também com o entusiasmo e fé de seus seguidores"
Alex Haslam
Professor de Psicologia Social e Organizacional na Universidade de Queensland, na Austrália
Professor de Psicologia Social e Organizacional na Universidade de Queensland, na Austrália
Seu artigo questiona o resultado dos experimentos de Stanley
Milgram e Philip Zimbardo. Quais seriam os erros na pesquisa de Milgram?
Eu discordo da ideia de que as pessoas aplicando os choques
estão simplesmente seguindo ordens. Na verdade, elas estão trabalhando
duro, confrontando uma situação muito desconfortável, para tentar fazer a
coisa certa e ajudar no avanço da ciência. Eles acreditam nisso. Não
são zumbis ou autômatos, mas pessoas que acreditam estar participando de
uma tarefa significativa. Quando alguns pensadores falam sobre o mal,
eles se referem a uma espécie de ladeira escorregadia, pela qual as
pessoas deslizam por inércia, sem pensar no que estão fazendo. Não é
esse o caso. Os participantes estavam lutando duro – aplicar choques em
seres humanos não é uma atividade facilmente digerível – para ir até o
fim da experiência.
Essa conclusão pode ser usada para analisar o comportamento de pessoas que vivem sob tiranias?
É claro. Muitos historiadores vêm tentando entender o comportamento dos
burocratas no regime nazista. Não é o caso de dizer que eles só
obedeciam a ordens. Esses burocratas sabiam muito bem o que faziam, e
acreditavam que era o certo. Matar pessoas inocentes é difícil, e requer
um grande nível de convencimento. Era a fé no regime nazista que lhes
permitia fazer isso.
Em 2002, o senhor realizou um experimento muito semelhante ao
de Zimbardo, mas chegou a conclusões diferentes. Por que isso aconteceu?
Na verdade, nossos experimentos atingiram resultados muito
semelhantes. No entanto, ficou muito claro para mim que esse resultado
não foi atingido simplesmente porque os guardas se conformaram ao seu
papel. Em nossa prisão, o sistema original falhou porque uma parte dos
guardas não se identificou com o papel. A cadeia viveu uma espécie de
hiato, no qual nada funcionava. Foi aí que um grupo de prisioneiros e
guardas se juntou e decidiu que precisavam de um regime mais
autoritário. Foi só quando eles passaram a acreditar que essa era a
solução para seus problemas que estabeleceram o novo regime. As pessoas
não entram naturalmente nesse tipo de situação e começam a brutalizar os
outros. Elas só fazem isso quando acreditam que essa é a coisa certa
para se atingir um objetivo. Isso pode ser visto em grande parte das
tiranias.
Em que tipo de situação isso acontece? As pessoas não
são tirânicas porque isso lhes é ordenado. Elas têm de se identificar
com a causa. Por exemplo, ninguém estava ouvindo o que Hitler tinha a
dizer no começo dos anos 1930. Foi só anos depois, quando os alemães
começaram a acreditar que o nazismo tiraria a Alemanha de uma situação
difícil, que alguns deles – os mais comprometidos com a ideologia – se
tornaram capazes de agir como agiram.
Então os indivíduos que seguem as ordens são ideologicamente comprometidos como a tirania? É
isso. Quando procuramos o que dá energia e dinamismo para a tirania,
não vamos encontrar pessoas que seguem ordens cegamente. As organizações
autoritárias só se sustentam porque alguns indivíduos se identificam
com elas, acreditam em seus pressupostos e trabalham duro para atingir
seus objetivos. Se as pessoas apenas seguissem ordens, esses regimes não
chegariam a lugar nenhum.
Fonte/http://veja.abril.com.br/noticia/ciencia/
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